21 de agosto de 2005

Entre Deus e o Diabo


Regresso, enfim, depois de uma longa ausência… regresso, enfim, num tom intimista, não porque queira, necessariamente, partilhar sentimentos ou ideias pessoais com alguém, mas apenas porque escrever exorciza e se, por ventura, algum dos meus amigos me ler é porque o faz há já algum tempo e a compreensão do que digo passa por muito mais do que a leitura destas linhas. Para os outros poderão ser apenas palavras, válidas ou não consoante a história pessoal e única de cada indivíduo.
Gostaria, antes de mais, de assumir que a escrita é um acto egoísta e, desde já, esclarecer que este sentimento, como todos os outros, embora não possa ser considerado objectivamente negativo, o inverso também não o poderá ser. E em que é que esta banalidade é importante? Pela simples constatação de que tal como vós vivo numa encruzilhada de afectos ou, como melhor dizia José Régio, “eu nasci do amor que há entre deus e o diabo”.
Costumo afirmar poeticamente que nasci com uma alma de luz e, na nossa cultura católica, as almas de luz são anjos, não mais do que isso, para não beliscar demasiado a humildade apostólica romana ortodoxa e, não menos que isso, para que não se sinta beliscada a dignidade do meu imaginário pessoal.
Os anjos, para mim, são seres em cuja essência está o prazer, o prazer pelo simples facto de ser em si e ser para os outros (interpretem, pois, a partir daqui, como quiserem). Isto não significa, pois, perfeição, nem suma bondade, nem capacidade de compreensão supra-humana, nem divindade sequer. Os anjos são aprendizes da alma humana, modestos quanto baste, porque a mestria não faz parte do seu ser, rebeldes em quantidade suficiente para que possam sentir verdadeiramente a humanidade. Perdoem-me, mesmo assim, a aparente imodéstia de afirmar que nasci com uma alma de luz, isto não significa dizer que o sou, nem que isso é melhor que nascer com uma alma de sombra, significa apenas que nasci com a necessidade de um certo tipo de aprendizagem que não é melhor nem pior que outra qualquer, como se tivesse que aprender uma arte ou o direito... Significa também que essa aprendizagem passa por conhecer a sombra, porque é daquilo que menos conhecemos que retiramos os conhecimentos mais profundos.
Mas sejamos mais objectivos, o que eu quero dizer verdadeiramente é que, embora naturalmente lute contra isso, também sinto raiva e mágoa e revolta, sonho com a morte de familiares e amigos, sonho que discuto e que uso até de violência para com pessoas que amo. Não são sentimentos com que, quem possui uma alma de luz, viva em harmonia, mas são ensinamentos necessários para que eu possa compreender o meu crescimento e para que os outros percebam que a maldade também faz parte de mim. Confesso-vos, pois que, embora racionalmente consiga ter uma compreensão das acções humanas acima da média (agora sim, é imodéstia), emocionalmente, tenho mágoas irreparáveis, raivas contidas, conflitos por resolver, egoísmos involuntários, vinganças mesquinhas. Mas é no assumir destes sentimentos que consigo respeitar e permanecer uma amante eterna dos outros e da vida.
Não me peçam, portanto, a perfeição, ela não existe e, mesmo que existisse jamais a reclamaria. Não fiquem magoados por um acto mais insensato da minha parte, mas também não me desculpem apenas porque sou eu que o faço…