Para aqueles que ainda reclamam as minhas parcas qualidades poéticas, e para satisfazer algum narcisismo pessoal que, de vez em quando também faz falta, aqui vai um poema da minha autoria escrito em Abril deste ano. Este poema surgiu quando, perto do meu aniversário, resolvi fazer uma retrospectiva dos principais acontecimentos desde o meu nascimento até 2010. E eis que me deparei com a estimativa que, em 1971, foi feita sobre o número de seres humanos sobre a terra.
Imagem: Richard Marchand
A CONTAGEM DAS ALMAS
Em 1971 eramos quatro bilhões de almas sobre a terra, se mais corpos animados não houvesse então… Mas como qualquer cristão nenhum homem na terra supusera que para além das suas outras almas havia… Para além da fronteira racional que já há muito da Ásia nos separara, a verdade é que bem contadas poderia haver, embora raras, outras almas que a incrédula cristandade não previra. Umas, em plano superior, se apartaram, outras, em plano abaixo do desejável por cá ficaram… E assim se explica que hoje, embora sejamos ainda mais bilhões do que os corpos então contáveis, vivamos parcos de almas e em vez delas surjam uma espécie de cópias descartáveis que, de tão habituais, parecem reais modelos de referência inimitáveis.
Os presidentes da Rússia, Dimitri Medvedev, e dos EUA, Barack Obama durante encontro em Londres(Foto: AFP)
Nunca vos aconteceu, em determinada altura da vida, não convidarem alguém para um encontro sem que isso implique qualquer gesto de desamor? Nunca vos aconteceu provocar uma ausência apenas porque a harmonia das restantes presenças a torna necessária, tal como os momentos de silêncio numa composição musical, sem que isso signifique um decréscimo nos afectos? E já vos aconteceu também deixarem de estar presentes para alguém depois disso? E, nesse momento, já vos aconteceu terem a serenidade necessária para pensar e sentir que a vossa própria ausência poderá ser, também ela, um factor de harmonia para quaisquer presenças? Confesso que a mim já me aconteceu tudo isto...
O que me é difícil ainda perceber é que a minha ausência seja uma resposta directa do outro à sua própria ausência, que alguém tenha que justificar esse gesto com qualquer justificação que não seja: "O nosso amor assim o exigiu" - mesmo que a razão não lhe assista. O que não devia existir é a desculpa politicamente correcta, porque isso implica culpa e a culpa implica intencionalidade.
O amor, seja ele qual for, não é contrato, é livre, não tem que exigir moeda de troca: não se convida alguém de que realmente se gosta porque também fomos convidados, não se oferecem prendas por prazer porque também nos ofereceram, não amamos porque somos amados.
A obrigatoriedade não pode fazer parte dos afectos, o comércio faz parte de outra dimensão.
Os Amigos
Os amigos amei despido de ternura fatigada; uns iam, outros vinham, a nenhum perguntava porque partia, porque ficava; era pouco o que tinha, pouco o que dava, mas também só queria partilhar a sede de alegria — por mais amarga.
Jeremy Irons no filme Irmãos Inseparáveis (Dead rings) de David Cronenberg
Dia 9 de Agosto seria o dia de aniversário do Ricardo - morreu há alguns anos atrás, com 29 anos e uma carreira brilhante na medicina (e também na vida, acrescento...).
Para quem não o conheceu, este é mais um nome, poderá haver uma leitura mais emocional consoante as características que eu lhe for atribuindo, mas para mim, foi mais um pedacinho arrancado de mim. A propósito dele, e sobretudo por ele, não é de morte que hoje vou falar, ou não especificamente da morte física, mas da separação.
Muitos autores já referiram que a emoção tem a ver com a distância - sentimo-nos mais afectados quando nos contam que o filho da vizinha partiu uma perna e, por isso, não pode ir à final do concurso de dança do que quando ouvimos dizer que todos os dias morrem à fome, em África, centenas de crianças. Eu sinto-me tentada a concordar com esta tese, mas acrescentaria que esta distância não é espacial, mas afectiva - sentir-me-ía mais triste se um amigo sofresse com o fim de uma relação amorosa na Austrália do que com o possível divórcio do vizinho.
O que acontece é que há pessoas com quem estabelecemos laços, uma espécie de fios invisíveis que nos unem. Podemos é perguntarmo-nos porquê esta necessidade humana (e não só) de criar laços? Se fugirmos à resposta banal de que fazemos isso porque faz parte da nossa natureza, a questão torna-se um pouco mais complexa.
Eu, por mim, gosto de pensar, influenciada pelas filosofias orientais, que fazemos parte de uma unidade e que a ligação com o outro não é mais do que o reconhecimento de que fazemos parte dessa unidade. Por isso se torna dolorosa a separação, é como se intuíssemos que o movimento correcto vai no sentido da união e não o inverso. Note-se, a este propósito, por exemplo, que, pelo menos para a maioria das crianças, a soma e a multiplicação parecem mais naturais do que a divisão e a subtração e, consequentemente, mais fáceis de compreender.
SONETO DE SEPARAÇÃO
De repente do riso fez-se o pranto Silencioso e branco como a bruma E das bocas unidas fez-se a espuma E das mãos espalmadas fez-se o espanto.
De repente da calma fez-se o vento Que dos olhos desfez a última chama E da paixão fez-se o pressentimento E do momento imóvel fez-se o drama.
De repente, não mais que de repente Fez-se de triste o que se fez amante E de sozinho o que se fez contente
Fez-se do amigo próximo o distante Fez-se da vida uma aventura errante De repente, não mais que de repente.