23 de julho de 2010

O QUE SÓCRATES DIRIA A FERNANDO PESSOA




Comecei a ler há dias um livro que comprei há algum tempo chamado O Que Sócrates Diria a Woody Allen, e nele o autor pretende fazer uma ponte entre o cinema e a filosofia, abordando algumas questões filosóficas através da análise de alguns filmes.
Hoje, ao regressar da escola saboreando as minhas primeiras horas de férias – sim, só agora, os professores, ao contrário do que se crê, têm exactamente direito aos mesmos dias de férias de outro trabalhador qualquer – pensava que seria interessante fazer uma ponte entre a poesia e a filosofia, paralelamente ao que é feito com o cinema, no livro que mencionei. Tinha acabado de encontrar uma pessoa de quem gosto muito mas que há cerca de um ano me desiludiu… estava então descoberto o primeiro tema – A DESILUSÃO.





… QUE ENFIM MORRA MAS QUE NÃO ME DESILUDA…



O poema que irei transcrever não fala de morte nem de desilusão, mas de um processo consciente e lúcido de ilusão e também do processo para a manter. Ora, quando pensava sobre o significado da desilusão veio-me imediatamente à memória este poema de Ruy Belo – Muriel – e mais precisamente a passagem que utilizei como título.
Mas o que é a desilusão? E o que é que nos pode levar a preferir que algo ou alguém morra em vez de nos desiludir? Antes de mais, penso que é importante salientar que a desilusão é a desconstrução da ilusão, a sua morte se o quisermos, e que esse processo, embora possa ser causado por outrem deve-se principalmente ao sujeito, ou seja, aquele que criou a ilusão. Mas porque é esse processo tão doloroso? A verdade é que só nos damos conta da ilusão quando nos desiludimos, porque até aí aquilo que, depois da consciência da sua inexistência passa a ser ilusão, era entendido como realidade objectiva. O que se passa então é, de facto, algo semelhante com uma morte, ou melhor, com um não nascimento. É como se lhe dissessem: - Olhe, o filho que sempre julgou ter, afinal nunca existiu… ou o pai… ou o amigo… era uma ilusão. A desilusão é assim semelhante a uma morte sem referência material, o que para nós é estranho (repara-se nas inúmeras referências materiais enumeradas ao longo do poema), pois associa-se sempre a morte à matéria e, quando o suporte material da ilusão persiste parece não fazer sentido a desilusão… esta torna-se mesmo incompreensível e, no auge de quem a sente parece ser mesmo mais suportável a morte do que a própria desilusão.
Note-se, no entanto, neste poema o desprendimento pela materialidade, apesar da necessidade constante de utilizar referentes materiais.



MURIEL



Às vezes se te lembras procurava-te
retinha-te esgotava-te e se te não perdia
era só por haver-te já perdido ao encontrar-te
Nada no fundo tinha que dizer-te
e para ver-te verdadeiramente
e na tua visão me comprazer
indispensável era evitar ter-te
Era tudo tão simples quando te esperava
tão disponível como então eu estava
Mas hoje há os papéis há as voltas a dar
há gente à minha volta há a gravata
Misturei muitas coisas com a tua imagem
Tu és a mesma mas nem imaginas
como mudou aquele que te esperava
Tu sabes como era se soubesses como é
numa vida tão curta mudei tanto
que é com certo espanto que no espelho de manhã
distraído diviso a cara que me resta
depois de tudo quanto o tempo me levou
Eu tinha uma cidade tinha o nome de madrid
havia as ruas as pessoas o anonimato
os bares os cinemas os museus
um dia vi-te e desde então madrid
se por ventura tem ainda para mim sentido
é ser a solidão que te rodeia a ti
Mas o preço que pago por te ter
é ter-te apenas quanto poder ver-te
e ao ver-te saber que vou deixar de ver-te
Sou muito pobre tenho só pior mim
no meio destas ruas e do pão e dos jornais
este sol de janeiro e alguns amigos mais
Mesmo agora te vejo e mesmo ao ver-te não te vejo
pois sei que dentro em pouco deixarei de ver-te
Eu aprendi a ver na minha infância
vim a saber mais terde a importância desse verbo para os gregos
e penso que se bach hoje nascesse
em vez de ter composto aquele prelúdio e fuga em ré maior
que esta mesma tarde num concerto ouvi
teria concebido aqueles sweter hunters
que esta noite vi no cinema rosales
Vejo-te agora vi-te ontem e anteontem
e penso que se nunca a bem dizer te vejo
se fosse além de ver-te sem remédio te perdia
Mas eu dizia que te via aqui e acolá
e quando te não via dependia
do momento marcado para ver-te
Eu chegava primeiro e tinha de esperar-te
e antes de chegares já lá estavas
naquele preciso sítio combinado
onde sempre chegavas sempre tarde
ainda que antes mesmo de chegares lá estivesses
se ausente mais presente pela expectativa
por isso mais te via do que ao ter-te á minha frente
Mas sabia e sei que um dia não virás
que até duvidarei se tu estiveste onde estiveste
ou até se existes ou se eu mesmo existi
pois na dúvida tenho a única certeza
Terá mesmo existido o sítio onde estivemos?
Aquela hora certa aquele lugar?
À força de o pensar penso que não
Na melhor das hipóteses estou longe
qualquer de nós terá talvez morrido
No fundo quem nos visse àquela hora
à saída do metro de serrano
sensivelmente em frente daquele bar
poderia pensar que éramos reais
pontos materiais de referência
como as árvores ou os candeeiros
Talvez pensasse que naqueles encontros
em que talvez no fundo procurássemos
o encontro profundo com nós mesmos
haveria entre nós um verdadeiro encontro
como o que apenas temos nos encontros
que vemos entre os outros onde só afinal somos felizes
Isso era por exemplo o que me acontecia
quando há anos nas manhãs de roma
entre os pinheiros ainda indecisos
do meu perdido parque de villa borghese
eu via essa mulher e esse homem
que naqueles encontros pontuais
decerto não seriam tão felizes como neles eu
pois a felicidade para nós possível
é sempre a que sonhamos que há nos outros
Até que certo dia não sei bem
ou não passei por lá ou eles não foram
nunca mais foram nunca mais passei por lá
Passamos como tudo sem remédio passa
e um dia decerto mesmo duvidamos
dia não tão distante como nós pensamos
se estivemos ali se madrid existiu
Se portanto chegares tu primeiro porventura
alguma vez daqui a alguns anos
junto de califórnia vinte e um
que não te admires se olhares e me não vires
Estarei longe talvez tenha envelhecido
terei até talvez mesmo morrido
Não te deixes ficar sequer à minha espera
não telefones não marques o número
ele terá mudado a casa será outra
Nada penses ou faças vai-te embora
tu serás nessa altura jovem como agora
tu serás a mesma fresca jovem pura
que alaga de luz todos os olhos
que exibe o sossego dos antigos templos
e que resiste ao tempo como a pedra
que vê passar os dias um por um
que contempla a sucessão da escuridão e luz
e assiste ao assalto pelo sol
daquele poder que pertencia à lua
que transfigura em luxo o próprio lixo
que tão de leve vive que nem dão por ela
as parcas implacáveis para os outros
que embora tudo mude nunca muda
ou se mudar que se não lembre de morrer
ou que enfim morra mas que não me desiluda
Dizia que ao chegares se olhares e me não vires
nada penses ou faças vai-te embora
eu não te faço falta e não tem sentido
esperares por quem talvez tenha morrido
ou nem sequer talvez tenha existido



(Ruy Belo, Todos os Poemas, Círculo de Leitores, p. 557)

3 comentários:

oasis dossonhos disse...

Amiga
A introdução está fantástica e este teu regresso ainda me parece...uma ilusão! Obrigado pela partilha.
Bjs

Unknown disse...

Em primeiro lugar o prazer de poder reler e saborear as tuas palavras novamente, bálsamo divino para desanuviar a FarmVille.
Sobre a desilusão ... será que poderíamos viver sem desilusões?
Penso que a desilusão passa também pela expectativa que depositamos nas coisas ou pessoas, porque passam tantas pessoas pela nossa vida e inúmeras situações e só algumas nos desiludem.
Beijinho
Ana

Elsa Santos disse...

Olá Cristina!
Desconhecia este teu blog e foi uma descoberta maravilhosa.
Por muito contraditório que pareça, adoro o tema que escolheste. Para mim, a desilusão é a quebra de um estado "encantatório" que parece resultar de uma percepção errada da realidade, como diz a tua amiga, modificada pelas nossas expectativas,mas o que é a verdade aqui,a ilusão, a realidade, as expectativas? Não poderei eu, ao desiludir-me, estar a criar a ilusão ou uma outra ilusão? Não poderei eu assumir essa desilusão como libertação e consequente necessidade de renovação, ou como privação, perda e consequente apego a uma outra realidade igualmente ilusória, mas que me protege? Isto sou eu a tentar entrar em "seara" alheia. Mas desilusão e ilusão são, para mim, duas amigas que andam de mãos dadas. Pudesse eu escrever tão bem quanto tu!!! Bj
PS: Adoro o título do teu blog. Lindo!